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Assincrônicos Croquis

Dolores A. de Medeiros

Texto da arquiteta Dolores A de Medeiros após diálogos com João Diniz.

Numa manhã de verão carioca, reunida com o grupo de professores da área de Desenho da FAU-UFRJ, propus aos meus colegas inserir como conteúdo programático das disciplinas de desenho de arquitetura a expressão gráfica dos croquis de arquitetos.

 

Éramos um grupo de doze arquitetos-professores com procedências e experiências acadêmicas bem diversificadas, um grupo heterogêneo de formação, idade e atuação profissional, mas significativamente homogêneo nos procedimentos didáticos. Apresentei aos colegas os croquis dos arquitetos mineiros que compõem o livro “Desenho de Arquiteto” de Euclides Guimarães e Gaby Aragão. 

 

Naquela manhã instituímos na FAU-UFRJ o croquis de arquitetos como tema de exercício curricular das disciplinas de desenho, e que mantenho até os dias atuais. Iniciamos a mostra didática pelos arquitetos mineiros, inigualáveis na arte de produzir e expressar croquis de arquitetura. Cada professor listou os cinco arquitetos de sua preferência. Um fato me chamou atenção: dentre os docentes e monitores, todos haviam incluído os desenhos de um certo arquiteto. Fiquei sem resposta para “porque” de todos se sentirem atraídos pelos croquis desse arquiteto.

 

Realizada a mostra da disciplina, solicitamos aos nossos alunos que observassem os vários tipos de expressão gráfica dos croquis dos arquitetos e apontassem aquela que cada um gostaria de reproduzir. Foi intrigante a escolha dos alunos. Aquele arquiteto selecionado por todos os professores era também o predileto deles. Outra vez fiquei sem resposta para o “porquê” dos alunos se sentirem atraídos pelos croquis daquele arquiteto mineiro.

 

Desde essa ocasião aplico nas disciplinas de desenho de arquitetura o tema “croquis de arquitetos”. Introduzi algumas alterações metodológicas, mas o propósito é sempre o mesmo: fazer do desenho o ferramental de comunicação da intuição no processo da cognição e criação do objeto arquitetônico.

 

Muitas vezes alterei os arquitetos participantes da mostra, fiz várias composições de grupos de arquitetos brasileiros e alguns estrangeiros. Entretanto, o mesmo fato se repetia quando aquele arquiteto mineiro participava da mostra: seus croquis conquistavam a maioria dos alunos. 

 

No doutorado da Universidade do Porto, em Portugal, escolhi como tema de investigação “O croquis como elemento integrador da cognição e concepção da arquitetura”. Realizei um experimento de tese envolvendo arquitetos pernambucanos, cariocas e mineiros, o que possibilitou conhecer e entrevistar aquele arquiteto mineiro, também fotógrafo, músico e poeta, ou simplesmente João Diniz. Então, durante a entrevista pude entender e obter a resposta do “porquê" dos seus croquis gerarem forte atração ao observador.

 

Não desejo analisar a arquitetura de João Diniz; esse não é o meu ofício como docente e arquiteta. Entendo que cada arquiteto tem o livre arbítrio de ver a arquitetura e nela se definir. Falo apenas como expectadora que se deleita com a obra de João Diniz, seja arquitetura, poesia, música, fotografia ou desenho artístico, sinto uns inerentes aos outros, partes de um todo realizado com muito talento e sem intencionalidade prévia, penso que às vezes até ele se surpreende com o que fez. Percebi em nosso encontro que isto é conseqüência da capacidade que ele possui de explorar e aproveitar um aparente desajuste ou ausência de conexões inerentes ao seu processo criativo, ou seja, as assincronias da criação artística.

 

Suas atividades  são conduzidas por uma  “força interior” que o impele à criação. Ele percebe mas se torna inexplicável. A princípio, as imagens surgem do nada; sem pedir licença permeiam sua mente. São muitas, fortes e detalhadas. Ele se entrega e elas se multiplicam; ele as vivencia intensamente. Com as imagens mentais ele percorre cidades, países, adentra espaços, habita edifícios, planeja, desenha, contempla e faz uso de suas próprias soluções.

 

Quando as imagens se tornam miragens, quase quimeras num limiar entre o possível e o impossível,  um momento de assincronias com aparência de “magia”...  surge a intuição materializada no desenho de croquis de arquitetura. Nos seus croquis às vezes comunica  um desenho tenso; outras vezes, ambíguo; com freqüência, com forte carga emocional; um misto de elementos do inconsciente e do consciente, da ilusão e da realidade; nem sempre uma criação concluída, mas em geral o registro da arte de fazer arquitetura.

 

Naquela entrevista com João Diniz, o seu estado de euforia ao falar de questões da arquitetura me fez compreender a atração do observador pelos seus croquis: seus traços são envolvidos de poesia, emoção, simplicidade e beleza que seu talento sabe manuseá-los, desenvolvendo-os e contendo-os na escala necessária à fórmula mágica da criação. 

 

Dois dias após nossa entrevista, retornei ao seu escritório e conversamos sobre meus estudos na área da neurociência e psicologia cognitiva como suporte à compreensão do processo de pensamento e criação da produção arquitetônica.

 

Durante nossa conversa relatei como havia entendido a sua estruturação cognitiva em arquitetura. Comentei também como a neurociência explica o caminho neural do processo de criação. Senti que o assunto o instigou e sem muitos detalhes descrevi a sua “arquitetura mental” gerenciadora do processo cognitivo e de criação. 

 

Os mistérios da criação sempre me instigaram. E com isso ouso tentar explicar o desconhecido, o invisível, o inexplicável... Quando João Diniz cria poemas, músicas ou desenhos artísticos, ele retrata com abstração o seu ideal, os quais, como  arte, se justificam por si sós. É no exercício da arquitetura que ele concretiza ideais, exterioriza a imagem do seu próprio interior, de seu modo de pensar e de seus anseios.

 

Nos seus croquis, isto é, nos momentos que registra intuições, seu ofício é praticado com arte, mas não tem unicamente objetivo artístico, pois em cada croquis revela-se a essência de produção arquitetural que há de ser gerada. Sua intuição não é descomprometida do seu ideal, ela se compromete com o tempo, a cultura e o espaço que o circunda, numa magistral simbiose em busca da criação histórica.

 

Nesse processo  há um tempo e tempos; há o que emerge do consciente e o que é  fruto do inconsciente. Mostram-se elementos de pura individualidade criativa, enquanto naturalmente flui a herança comum, na qual transcendem todas as diferenças de cultura e de atitudes conscientes – os símbolos dos arquétipos.

 

A mente de João Diniz acolhe muitos símbolos e, como elementos da psique têm vida, atuam e transmitem intuições altamente estimulantes que alcançam dimensões que o conhecimento racional não pode atingir. São esses símbolos que aproximam o consciente do inconsciente e tornam João muito mais emoção que razão. E ao tomar o caminho criativo da emoção sua mente lhe nega as simples soluções e lhe recompensa,  permitindo livremente fluir intuições criativas nativas das vibrações ocultas do inconsciente. 

 

Razão e percepção não lhe faltam, e pelo que pude apurar chegaram juntamente com a sua inseparável câmara Nikon. Penso que foi pela fotografia que João olhou e enxergou a vida. E  pelo visor e lente da Nikon percebeu, identificou, interpretou, denunciou e compreendeu o mundo.

 

Certamente a fotografia aguçou o sentido da sua percepção, ensinou-lhe  identificar e interpretar cenários muitas vezes descritos em poesia e outras vezes registrados pela ótica da visão, concretizados em suas fantásticas cadernetas compostas de desenhos de paisagens, edifícios, fatos, pessoas, croquis e  muitos devaneios... 

 

Acredito que  é a fotografia e a poesia que o conduzem a cognição e a criação, ambas estruturadas num repertório de imagens visuais e lingüísticas arquivadas nos depósitos mnemônicos, gerando em sua mente um “museu do imaginário”, com imenso repertório de imagens prontas a fluírem a qualquer momento. 

 

Percebo que João passou a criar arquitetura como uma foto sem legenda, conduzindo o observador a reações intensas e espontâneas, evocando dos sentidos uma compreensão descritiva e sugestiva que vai além dos elementos arquitetônicos visualmente perceptivos. 

 

Suponho que num momento de amadurecimento e de plenitude pessoal e profissional, o visor e lente da Nikon foram assimilados ao sentido da visão. Para João, agora lhe bastam: lápis, canetas, linhas, traços e papel. E assim ele retrata tempos e lugares... retrata a si mesmo criando Arquitetura.

 

João Diniz promove com amor incomum o processo de criação em arquitetura e o espetáculo do desenho arquitetural – o croquis, o que o torna um dos mais legítimos representantes da arquitetura mineira e brasileira. A antiga espectadora da produção do arquiteto João Diniz agora o percebe um pouco além... um amigo. 


Valeu João!

 

Dolores Araruna de Medeiros

Arquiteta e professora, UFPE  e

FAU-UFRJ

 

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