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Cronologias em Diálogo: aspectos de BH no início do século XXI

João Diniz

29 de abr. de 2008

Texto do Joao Diniz para jornal 'O Tempo' 2008

ASPECTOS DO IMAGINÁRIO ESPACIAL EM BELO HORIZONTE NO INICIO DO SÉCULO XXI


IMAGENS SONHADAS

 

Em certa fase do século XX acreditava-se que no futuro, por volta do ano 2001, as cidades estariam totalmente transformadas.  Os cenários da ficção cientifica eram a referência para as imagens de uma época onde os espaços urbanos substituiriam suas históricas contradições por uma eficiente felicidade acética idealizada e sonhada como solução formal e humana para as incertezas do porvir.

 

Existem em nossas mentes, de seres trans-milenares que somos, várias imagens, recolhidas desta historiografia ficcional, onde pequenos veículos aéreos cruzam os céus urbanos como bolhas de vidro e luz com pessoas transportadas neles, ou que de forma mais eficiente, se desmaterializariam em um local surgindo em outro. Paises poderiam ser transpostos assim e as linguagens não seriam problema pois algum tipo de cirurgia mental instalaria em qualquer cérebro o chip de um idioma desconhecido, eliminando qualquer barreira de comunicação entre os povos.

 

As construções igualmente apareceriam como máquinas eficientes e funcionais. As mega-estruturas seriam a invenção redentora onde a cidade ganharia a forma de grandes redes artificiais onde qualquer resíduo de uma natureza indomável estivesse distante.

 

Neste ambiente não existiria  lugar para os excluídos ou os  miseráveis, as pessoas em seus trajes geométricos seriam praticamente iguais, belas, alegres, servidas igualmente por estes sistemas de conforto e paz.

 

Em meu pensamento de criança eu esperava o momento em que Belo Horizonte se transformasse nessa figura de cidade ideal alinhada com o futuro, a tecnologia, as boas lembranças e a felicidade.

 

FICÇÃO BRASILEIRA

 

Ao mesmo tempo era previsível que este ambiente de projeção temporal chegaria ao Brasil de forma própria uma vez que estas cenas da evolução humana e de seus espaços vinham de uma Hollywood distante, postulados imaginários de uma visualização utópica para um amanhã ideal.

 

O filme Blade Runner, O caçador de Andróides, foi, em minha memória, o primeiro a propor uma modificação deste ambiente futurista e esterilizado. As ruas de suas cenas estavam cheias de lama e conflitos. Os ícones do futuro tecnicista estavam lá, mas existia uma multidão de mendigos de etnias periféricas, automóveis antigos, crime, roubo, corrupção.

 

Nesta película o que os andróides, perfeitos seres humanos artificiais de curta existência, mais queriam era ter uma memória afetiva, um passado que pudesse ser lembrado. Carregavam fotos de desconhecidos, falsos e inexistentes parentes forjando uma herança familiar, como se isto fosse a condição primeira para que alguém fosse humano.

 

Não me lembro de nenhuma história deste futurismo ficcional que propusesse o que realmente aconteceu em diversas partes ao redor do planeta. Uma das maiores diferenças entre este tempo ficcional e o tempo real, está na idéia de que as pessoas na verdade não são transportadas, mas seus pensamentos, seu trabalho, sua imagem, voz e até seus sentimentos.

 

Quase toda a parafernália mecanicista daquela cinematografia mental está hoje dentro de um computador pessoal e do telefone celular. As pessoas podem se encontrar no trabalho ou nas ruas, mas a grande parte da comunicação e da produção se dá de forma remota. A palavra ´virtual´ tem mais sentido hoje que nos tempos da Odisséia no Espaço ou de Flash Gordon.

 

As cidades acabaram não se transformando neste cenário idealizado de um futuro ficcional. Diversas contradições ainda as habitam, as tensões sociais aumentaram, a violência é a maior inimiga, a segurança está atrás de grades e alarmes, o inimigo pode estar ao seu lado e te tomar de assalto explodindo todas as suas esperanças.

 

BH, NOSSO LUGAR NO MUNDO

 

Belo Horizonte como uma cidade do mundo também assistiu a estas projeções, expectativas e curiosidades. Como cidade planejada, inventada na mente e na prancheta de seus realizadores, talvez guarde uma proximidade maior com a possibilidade de qualquer utopia transformadora.

 

Irreversivelmente a bordo do século XXI podemos fazer um exercício de entender o que aconteceu, ou o que está acontecendo, uma vez que o tempo flui como um rio e ele nunca é o mesmo porque os dias passam como águas que não voltam.

 

Em um descontinuo passeio pela cidade nos dias de hoje avistamos ruas cheias, tráfego, buzinas, malabaristas de semáforos, camelôs, táxis, pedintes, e muito mais coisas sob a Serra do Curral. São partes de um cenário conhecido e real. Um  visitante estrangeiro talvez estranhasse alguns destes personagens, mas nós habitantes de BH os conhecemos bem.

 

Façamos agora uma leitura de nossa cidade, um exercício de comparação entre dois tempos paralelos em pontos de sua atual paisagem construída, em alguns casos contrapondo realizações distantes em mais 50 anos de suas respectivas realizações. O primeiro tempo é o tempo da memória, da lembrança de possibilidades descortinadas num passado recente. O segundo tempo é o presente, o ambiente real, materialmente vivo, mas ligado a tempos anteriores como se a cidade fosse o andróide que para se manter vivo tem que guardar e entender a sua história. Um terceiro tempo ficará a cargo de cada um em suas reflexões, conclusões e propostas pessoais.  

 

O CENTRO COMO ALMA

 

Estamos na Praça Sete de Setembro, o coração da cidade, ponto de grande convergência e passagem dos moradores, centro do hipercentro onde foram concluídas em setembro de 2003 obras de requalificação de seu espaço central, e das quatro ruas de pedestres fechadas ao tráfego. Embora faça parte da equipe que elaborou a proposta quero aqui, mas mais que justificar o projeto fazer algumas considerações pertinentes ao alcance desta ação.

 

Certamente o primeiro patrimônio de Belo Horizonte é o seu traçado urbanístico. A ortogonalidade das duas malhas das ruas e avenidas giradas a 45 graus faz de BH um exemplo mundialmente conhecido por esse tipo de urbanismo. Ela é freqüentemente citada ao lado de Washington nos Estados Unidos, La Plata na Argentina, e outros projetos de cidades novas do inicio do século XX. Esta geometria está pousada sobre o relevo montanhoso da Serra do Curral, propondo uma característica do espírito da cidade e de sua gente, aonde a racionalidade do projeto se associa à sensualidade da geografia, definindo o caráter pluralista e complementar de sua paisagem urbana e social.

 

A Praça Sete de Setembro é o centro  dessa mandala urbana e o projeto de revitalização vem de um concurso nacional de Idéias Para o Centro de Belo Horizonte, o BHCentro de 1989, onde três equipes foram premiadas. Uma destas equipes era formada, por uma fusão de escritórios coordenados pelo arquiteto Maurício Andrés, que são os  do arquiteto Gustavo Penna; o de Álvaro Hardy e Mariza M. Coelho; o de Jô Vasconcellos e Éolo Maia em associação com Flávio Grillo que foi o coordenador geral do projeto e o meu escritório em associação com as arquitetas Graça Moura e Márcia Moreira.

 

Dois anos após a realização do concurso BHCentro essa grande equipe foi convidada a elaborar o projeto para a nova Praça Sete. Este projeto de 1991 é o que se inaugurou em 2003, com algumas modificações sugeridas pelas diversas administrações municipais nestes doze anos, ainda que de diferentes partidos políticos, todas elas empenhadas em implantar o projeto.

 

Este pequeno histórico pode sugerir o alcance e a agilidade do poder publico em Belo Horizonte em abordar esse tipo de requalificação urbana. É claro que podemos criticar o alcance da intervenção que não transformou profundamente ou radicalmente a praça mas devemos também entende-la como a imagem do possível e do viável no presente instante. Uma acupuntura urbana  que valoriza um ponto chave criando, através da inserção de um mobiliário diferenciado, um grande estar urbano para a população nos quatro quarteirões fechados e valorizando o obelisco central ponto focal de toda a composição.

 

O centro da cidade é o principal valor de nossa consciência e identidade urbana. A qualificação deste espaço focal irradia para toda a cidade a integração entre os habitantes e seus espaços de convívio. Intervenções para a melhoria do centro sempre estão na pauta das ações solicitadas pela população, ou detectadas pelos técnicos, e intermediadas pelo poder publico que seguidos pela iniciativa privada podem e devem ser os deflagrar estas modificações.

 

O centro da cidade está também presente na atual discussão em torno da saída do Centro Administrativo Estadual da Praça da Liberdade, outro ponto de grande valor ambiental e simbólico da cidade. São defendidas duas posições: uma é a construção do novo centro administrativo na área do aeroporto do Carlos Prates cujo projeto foi solicitado ao nosso Oscar Niemeyer; outra hipótese é que fossem ocupados diversos edifícios ociosos pertencentes ao estado na zona central da cidade, gerando nova dinâmica na área.

 

Não cabe aqui defender uma ou outra posição mas podemos entender a oposição entre elas. A construção de um novo provável símbolo urbano se contrapõe a uma proposta de melhoria e reutilização de pontos existentes no  centro da cidade.

  

MISTÉRIOS DA FÉ

 

Caminhando pela avenida Olegário Maciel tem-se duas construções marcantes e impactantes por sua escala e presença no contexto. Uma delas é o Conjunto JK símbolo de uma utópica experiência habitacional nos anos 50; o outro é o recentemente concluído templo religioso construído nas imediações, A Catedral da Fé, obra que mobilizou grande parte dos melhores fornecedores para a construção civil atualmente existentes na cidade.

 

Conforme visto durante a obra, no templo foram utilizadas várias das tecnologias de ponta atualmente disponíveis, como estrutura e painéis de fachadas em concreto pré-fabricado, vidros espelhados coloridos, avançados estudos de acústica, instalações, e segurança entre outras. Paralelamente a estes avanços técnicos a construção apresenta uma imagem historicista e um aspecto clássico, com o seu grande frontão de acesso, suas escadarias frontais, adornos renascentistas fundidos em material plástico, torres encimadas por cúpulas douradas.

 

Esta fusão de elementos históricos e tecnológicos, gera a imagem do templo, relendo numa escala bem maior e impressionante a tradicional forma eclética das igrejas de inspiração neoclássica através do uso dos vários materiais criando uma estética ao mesmo tempo austera e imponente, retrato de uma nova fé que busca atrair e abrigar seus novos fiéis.

 

O conjunto JK na contra-esquina diagonal por sua vez apresenta sua imagem alinhada aos cânones da arquitetura modernista revistos por Niemeyer nos anos 50, ou seja a simplificação cúbica e o uso de poucos materiais. Esta obra também usou a tecnologia de ponta de sua época  e revela em seu programa uma tentativa de criação de um ´edifício-cidade´ onde estariam presentes diversos serviços complementares como residência, abastecimento, lazer, cultura e até um hotel.

 

Esta utopia estava alinhada com os ideais socialistas do arquiteto e a visão progressista de JK. O edifício hoje está sendo reformado com a substituição de seus brises-soleils e esquadrias mas guardou por muito tempo uma preconceituosa imagem de abandono e de  baixa qualidade ambiental. Antes de ser construído o templo vizinho funcionou em amplo salão no térreo do edifício JK.

 

A contraposição dos dois tempos nas duas edificações, seus fundamentos ideológicos e culturais e o respectivo resultado espacial de cada uma das propostas nos leva a pensar na descontinuidade da evolução de uma estética construtiva, aos olhos da população, desde a revolução modernista dos anos 40 até os dias de hoje.

 

O Brasil foi reconhecido como o país que melhor acolheu e produziu arquitetura moderna a partir desta época, chegando a ser foco internacional de interesse. Os princípios desta nova forma de projetar e construir foram levados aos limites com diversos acertos e equívocos que ainda estão presentes na cultura arquitetônica mundial passando por revisões e momentos de crise.

 

Por outro lado podemos constatar que o gosto brasileiro que bem recebeu as novidades modernistas nos meados do século XX está hoje mais alinhado a uma estética globalizada que é traduzida de acordo com os critérios estéticos e a liberdade de cada um que realiza ou admira as novas obras construídas.

 

Na arquitetura como na música parece existir atualmente uma distância entre o que em um certo momento representou nossa cultura e identidade nacional, como por exemplo Brasília, a Bossa Nova ou a chamada MPB, e o que realmente se constrói e se consome hoje nos diversos cantos do país, nas festas populares, na maioria das estações de rádio e TV.

 

ADOLECÊNCIA E MATURIDADE URBANA

 

Outro exemplo desta contraposição de tempos e resultados estilísticos existe entre duas operações de expansão urbana baseadas na criação de novas áreas residenciais nos arredores da cidade. Nos anos 40 a Pampulha surge como projeto de criação de um novo pólo residencial, e de lazer. Em torno da lagoa as construções de um cassino, um clube, uma igreja e uma casa para bailes populares viriam a sinalizar a operação do novo eixo de crescimento da cidade. A história é bem conhecida, o jovem arquiteto Niemeyer, convidado pelo então prefeito JK, projeta os edifícios que deram início à, a partir de então mundialmente divulgada, arquitetura moderna brasileira.

 

Se compararmos este momento a uma outra operação de expansão urbana em torno de um lago, o condomínio Alphaville dos anos 90 no vetor sul da cidade nas margens da lagoa dos Ingleses, veremos que as propostas e resultados são bem diferentes, ainda que as duas aproveitem bem a qualidade visual gerada pela linha horizontal da água.

 

É lógico, os tempos são outros, a segurança passa a ser o fator mais importante num assentamento deste tipo o que justifica a quantidade de muros e guaritas que garantem a tranqüilidade dos moradores no Alphaville. Mas se nos detivermos na imagem das construções públicas dos dois empreendimentos somos levados a contrapor a imagem das obras da Pampulha, que passam a ser o símbolo de BH, às construções do outro numa interpretação estilística ligada às tradições espanholas ou mexicanas.

 

As duas operações urbanas geram assim resultados próprios. A primeira, mais antiga, inclui uma forte dose de intenções vanguardistas e culturais enquanto a segunda prefere um efeito cenográfico importado. Mesmo estando as realizações distantes em mais de mais de 50 anos, a mais tradicional e conservadora é a mais recente.

 

A LAGOA MUTANTE

 

Esta mesma região da Pampulha sofreu desde sua criação um enorme crescimento mas, de certa forma, manteve sua característica de lugar de ócio e contemplação. Apesar da expansão de sua densidade populacional suas margens são ainda o principal contato da população com um grande espelho d´água. A grande perda ambiental nestes anos foi a diminuição desta superfície hídrica devido a uma série de assoreamentos e descuidos ambientais chegando a gerar uma grande ilha num dos cantos do lago.

 

Reconhecendo o valor da região para a identidade urbana o poder público vem realizando obras na Pampulha que trazem uma nova qualidade ao local através dos projetos dos arquitetos Álvaro Hardy, Mariza M. Coelho e Gustavo Penna. Estas intervenções  se baseiam em reforçar a vocação do local de ser área urbana voltada ao lazer e pratica de esportes, caminhadas e ciclismo.

 

Optando por não fazer intervenções de grande impacto construtivo o projeto valoriza as margens do lago através de pistas para pedestres e ciclovia, cria vários locais de esportes e permanência, ao longo de toda a borda da lagoa. Segundo os autores uma série de reuniões foi feita com os diversos representantes da comunidade local, o que balizou as decisões adotadas.

 

A área da grande ilha formada pelos assoreamentos será transformada num parque que valorizará as espécies animais e vegetais que ali se instalaram. Alguns equipamentos darão suporte ao funcionamento deste parque.

 

Esta obra, juntamente com a revitalização da Praça Sete, sinaliza a atual preocupação do poder público municipal com áreas de grande significado para a cidade. A simplicidade das intervenções nos dois casos mostra que, mesmo na falta de grandes recursos, algo pode ser feito e que as administração municipais não devem se afastar dos anseios da população buscando criar espaços urbanos afetivos e efetivos.

  

MIRADAS E MORADAS

 

Existem diversos projetos de interesse público para vários locais da cidade de Belo Horizonte realizados e arquivados em instâncias da administração municipal. Vários deles ainda guardam certamente

sua vitalidade e sua necessidade de serem realizados enquanto outras demandas surgem a cada dia exigindo que novas propostas sejam elaboradas.

 

A pobreza ambiental de grande parte de nossas cidades se deve ao afastamento progressivo que o estado vem mantendo destas questões espaciais após os tempos heróicos da Pampulha e de Brasília. A cidade a partir de então fica muito mais sujeita ao jugo comercial e empresarial com o foco principal das novas realizações mais voltado ao lucro do que ao interesse histórico e social de outras épocas. Qualquer tentativa de resgate deste tempo perdido é bem-vinda. Existe atualmente um novo tipo de empresas preocupadas com a responsabilidade social e ambiental, que tem muito a contribuir nestas questões.

 

É necessário que todos os setores da sociedade reconheçam que o ato de construir modifica às vezes irreversivelmente as paisagens, mas que essa transformação pode se dar de maneira positiva acrescentando qualidade ao ambiente urbano e cultural. Toda ação tem seu sentido simbólico gerando significados e sentimentos diversos.

 

Existe espaço para todas as estéticas e culturas mas deve sempre prevalecer a preocupação com o ser humano, com sua identidade, com a sustentabilidade e evolução de sua cultura original, na manutenção de sua memória e nas proposições coerentes e necessárias para o seu futuro.

 

As melhorias ocorridas em Curitiba, Recife, Salvador, Rio de Janeiro e outras cidades, e mesmo em outros países, podem nos servir de exemplo e inspiração. A paixão entre habitantes e seus espaços são um sinal da vitalidade de uma cidade e cabe a todos, poder publico, privado e cidadãos agir no sentido que esta estima não seja abalada ou que seja resgatada.

 

Que não haja espaço para a apatia ou a intolerância. A participação é fundamental. Todas opiniões e criticas são bem-vindas. O debate é fundamental. Todos são responsáveis pela saúde e bom desempenho deste organismo vivo que é a cidade. Belo Horizonte como uma das principais metrópoles brasileiras pode e deve manter sua vocação de ser um dos principais centros geradores de idéias e realizações pioneiras.

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