Arquitetura & Poesia
Luis Turiba
1 de fev. de 2020
Texto de Luis Turiba para o suplemento PENSAR do jornal 'O Estado de Minas"
ARQUITETURA & POESIA
Luis Turiba*
Especial para o Estado de Minas / Publicado no suplemento ‘Pensar’ em 31 / 01 / 2020.
O poeta-arquiteto João Diniz inventa a linguagem de uma poética funcional.
1- Quando Chico Buarque troca o curso de arquitetura na USP pelo samba carioca de Noel Rosa, em meados dos anos 60, acaba sendo jogado, já na idade madura, no colo de Luiz de Camões como um dos maiores escritores da língua portuguesa deste século 21.
2- Niemeyer, por sua vez, escreveu versos sobre as curvas sinuosas da mulher brasileira, os rios e as montanhas de Minas, e concluiu: “A vida é mais importante que a arquitetura”. Mas sua arquitetura de ângulos retos se eternizou foi nas curvas.
3- João Cabral foi diplomata e amava a arquitetura até como suporte para construir seus poemas. Escreveu este verso, um dos mais lindos de sua obra: “A arquitetura como construir portas,/de abrir; ou como construir o aberto;/ construir, não como ilhar e prender,/ nem construir como fechar secretos;/ construir portas abertas, em portas;/ casas exclusivamente portas e tecto./ O arquiteto: o que abre para o homem/(tudo se sanearia desde casas abertas)/ portas por-onde, jamais portas-contra;/ por onde, livres: ar luz razão certa.”
Fui buscar essas três referências em que poesia e arquitetura se trespassam por um nobre motivo: conheci recentemente o poeta-arquiteto João Diniz, mineiro de Juiz de Fora, que veio para Beagá ainda bebê, na 33a edição do Psiu Poético, que todo ano resiste em acontecer na cidade de Montes Claros, pertinho do Vale do Jequitinhonha. Os convidados do poeta-líder Aroldo Pereira eram seis (eu estava lá para lançar o meu livro Desacontecimentos e coordenar uma mesa de debates), todos com mensagens para este momento do país. Encontro profícuo.
Na noite de apresentação dos poetas, João Diniz me chamou a atenção pelo conteúdo (versos curtos, rápidos, musicais e carregados de significados), além da maneira como apresentou os seus poemas, usando suporte tecnológico, quase musical. Afora isso, dentro da programação, ele ainda mostrou dois filmes sobre cidades com olhares experimentais e cortes arquitetônicos para Salvador e seu mar afrobaiano, e Paris e sua monumental Torre Eiffel.
No livro Aforismos experimentais, editado pela Asa de Papel e apresentado no Psiu, João avisa que “o texto é a coragem do autor”, portanto “escreva-se”. “Passar a página é um voto de confiança”, avisa. E você, leitor, segue em frente, folheando aquelas frases soltas que vão formando poemas mentais. Afinal, “a invenção desenferruja o presente.”
Nosso poeta-arquiteto traz para suas apresentações um laptop onde o texto recitado chega ao público compartilhado com efeitos sonoros, imagens e luzes. Ele se apresenta manobrando uma série de “poemobjetos” de formatos geométricos. Uma parafernália, aliás, que vai no rastro dos recitais poéticos de Arnaldo Antunes e Ricardo Aleixo, que, por sua vez, dialoga com o Poesia é risco, espetáculo inaugural no qual o poeta concreto Augusto de Campos se apresentou com o filho guitarrista Cid Campos e o videomaker Walter Silveira, tanto no Brasil como no exterior.
Óbvio que a breve apresentação do João no palco do Psiu foi bem mais simples e limitada em função do espaço, do tempo e da própria infraestrutura. Os suportes, no entanto, sustentavam uma poesia de alto valor rítmico, como Maçã: “Desatar a mágoa na sanidade táctil/ Demarcar a trégua, eternidade volátil?/ Adão, na transgressão primeva, inventou um gosto com Eva./ A serpente é o passado, ao desfazer o pecado/ O paraíso é inventar, o seu próprio juízo/ no canto preciso, na luz, e no espanto do anjo./ Santo torpor livre no ar, o gesto, a amizade sã,/ Massa suave, o gosto afã, provar efetiva maçã”.
Outro poema apresentado como um hit musical foi Tanto, que fez a plateia sacudir os ombros e as pernas: “De tanto queimar, gelou/ de tanto pensar, travou/ de tanto falar, mentiu/ de tanto riscar, apagou/ De tanto brilhar, cegou/ de tanto clamar, negou/ de tanto atar, cortou/ de tanto chamar, afastou/”
Um refrão discreto sustenta a musicalidade do poema: “Cada vez mais precisamos de poucoO ser mais simples é o ser mais solto.”
E, no embalo, surge uma nova chamada na voz do poeta que permite uma imediata identificação do público com um clássico dos últimos escândalos da política brasileira.“Seria ideal manter-se assim/Mineral vegetal animal.”
POEMAS FUNCIONAIS OU ARQUITETURA DOS POEMAS
Para Aroldo Pereira, coordenador e organizador do Psiu Poético, ter João Diniz como homenageado do festival de 2019 foi um luxo, um ato de resistência: “Ele é um multiartista com total domínio dos instrumentos de trabalho. Com sua competência criadora, tem contribuído de forma permanente com a contemporânea poética de Minas e do Brasil. Como performancer, músico, artista plástico, poeta, humanista e arquiteto. Um dos grandes artistas do Brasil no século 21”, brada Aroldo.
Abramos agora mais este leque para este poeta cheio de salamaleques, tirando mais coelhos da sua cartola. Afinal, há sempre um rabisco arquitetônico nos poemas sonoros de João, mas como profissional da visão, do olhar, do estético, do concreto e do cálculo; ele segue, entre tantos caminhos, um ensinamento do poeta-mestre Mário Quintana, baseado no poema Arquitetura funcional.
Aqui, um parênteses: li recentemente num texto do poeta Ricardo Silvestrin intitulado Da poesia da arquitetura à arquitetura da poesia, no qual ele aponta, via Quintana, a funcionalidade da arquitetura na poesia e vice-versa. De tão próximo do que estamos falando, vale citar o poema do velho mestre gaúcho:
“Não gosto da arquitetura nova/ Porque a arquitetura nova não faz casas velhas/ Não gosto das casas novas/ Porque as casas novas não têm fantasmas/ E, quando digo fantasmas, não quero dizer essas assombrações vulgares/ Que andam por aí.../ É não-sei-quê de mais sutil/ Nessas velhas, velhas casas,/ Como, em nós, a presença invisível da alma.../ (...) A pena que me dão as crianças de hoje!/ Vivem desencantadas como uns órfãos:/ As suas casas não têm porões nem sótãos,/ São umas pobres casas sem mistério./ Como pode nelas vir morar o sonho/ O sonho é sempre um hóspede clandestino e é preciso/ (...) É preciso ocultá-lo dos confessores,/ Dos professores,/ Até dos Profetas/ (Os Profetas estão sempre profetizando outras coisas...)/ E as casas novas não têm ao menos aqueles longos, intermináveis corredores/ Que a Lua vinha às vezes assombrar!”
Depois deste auxílio luxuoso, voltemos ao poeta belo-horizontino, pois esses objetos fantasmagóricos que Quintana clama nas casas antigas João Diniz os cria novos aos borbotões em casas velhas ou novas, em praças, em espaços públicos, em galerias, em exposições, como, por exemplo, na Casa Cor de Beagá, onde instalou recentemente a Cuboesia, uma peça de 4 por 4 metros onde no seu interior podem ser recebidas até 10 pessoas ao mesmo tempo. Cada um dos seis lados do cubo tem uma poesia concreta de quatro palavras, cada uma com 4 letras, todas diferentes umas das outras. Exemplo: Esse povo quer voar. Portanto, sinta-se em casa com seus novos fantasmas.
Aliás, são muitas outras as experiências poéticas praticadas por João Diniz com base na funcionalidade da arquitetura. Seus poemas-funcionais estão também nos prédios construídos por ele e sua equipe, como o Capri e o Scala. O cruzamento dessas duas vertentes – arquitetura e linguagem poética inventiva – está nas referências que carrega desde os tempos que era estudante até hoje. Sintam neste depoimento-manifesto feito especialmente para o Pensar as bases teóricas do seu poetar, assim como seus mestres nessa caminhada.
POESIARQUITETADA
“A poesia é a arquitetura das palavras e a arquitetura é a poesia da construção e dos espaços. Na busca da síntese máxima as duas disciplinas seguem paralelas na cultura humana construindo sentimentos, escrevendo com edifícios e cidades os ritmos do tempo e da história.
Alguns personagens, dentre tantos, confirmam essa quebra de fronteiras entre espaços e palavras:
Leonardo da Vinci provou que não existem barreiras entre ações artísticas e uniu escrita, projetos e diversos outros interesses em sua obra. Richard Wagner compôs suas óperas históricas e projetou espaços teatrais adequados a elas. Buckminster Fuller repensou as possibilidades de uma construção que aprendesse com a natureza e escreveu seu pensamento em premiado livro de poesia. Num provável debate entre arquitetos fundamentais do século 20, Fuller discutiria o conceito seminal do ‘menos é mais’ contrapondo sua visão orgânica com a visão artística e industrial de Mies van der Rohe. Joaquim Cardoso, o engenheiro que calculou as formas de Niemeyer, construiu também reconhecida obra poética com uma dicção que dialoga com as tradições nordestinas e o modernismo brasileiro. Sérgio Bernardes uniu conhecimentos de construção e projeto a uma forma visionária e lírica de antecipar o futuro num legado que ainda carece ser entendido. Amílcar de Castro com suas esculturas definiu espaços e fendas através de precisos cortes e dobras, e paralelamente registrou seu pensamento com poesias. Peter Zumthor explica seu pensamento arquitetônico com a oratória sensível nas Atmosferas, sua notável conferência publicada. Lina Bo Bardi chega ao Brasil e se encanta com a polifonia de suas vozes. Sua herança ficou em suas obras, desenhos e textos onde poeticamente nos mostra com sua vigorosa visão feminina uma nova forma de entender nosso país. Onde houver inovação e liberdade a poesia e a arquitetura seguirão sempre de mãos dadas.” João Diniz, outubro de 2019
NOVOS PROJETOS
O poeta-arquiteto está cheio de projetos novos pré-elaborados. O Livro das Linhas, com poemas textuais, está no prelo e deve sair este ano. Mais ousada é a proposta de uma exposição/livro/catálogo em 2020. Título: Poemateria, unindo num mesmo ambiente todos esses suportes im-previstos para texto, tais Os lenços livres, Aforismos gráficos, a instalação Trama, com esculturas; cubos em inglês produzidos na Hungria e Inglaterra; os cubos domesticados, os Poemobjetos; os Poetramas; os Textenhos (textos mais desenhos), o ...escrever é sopa, além da Poesia pós digital, poemas gráficos montados com restos de teclados. Isso sem falar de peças soltas e híbridas unindo aforismos design e escultura mobiliária. Ou seja: haja tempo, haja espaço, haja traço, haja ar-quitetura para tanta poesia.
* Luis Turiba
poeta, ex-editor da revista Bric-a-Brac, publicou recentemente pela 7 Letras, do RJ, o livro Desacontecimentos
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