nano-romance de situações e lugares
UM LIVRO PARA VIAJAR
Anelito de Oliveira
Estamos aqui diante de um dos artistas contemporâneos mais instigantes. Vamos começar procurando o significado desta palavra, um adjetivo, palavra que expressa qualidade, derivado do verbo “instigar’. Instigante é aquilo que estimula, que induz, que nos incita a praticar uma ação.
O artista João Diniz nos estimula a praticar a ação de sair de um sentido restrito de poesia, de música, de arte plástica, de performance e de todas as outras modalidades artísticas que pratica. São muitas, todas as possíveis, nunca pela via ortodoxa, isto é, disciplinar, restritiva. Cada uma das suas artes é sempre dependente de outras artes: a poesia depende das artes plásticas, a música depende da poesia, que por sua vez depende da escultura. Esta depende da performance, que por sua vez depende da não-arte, do que extrapola a noção limitada de arte.
Por que é assim, afinal? Porque o artista mineiro é um arquiteto, aquele que lida com a “arque”, com o princípio das coisas.
No princípio do seu trabalho, o que se coloca é o verbo no sentido prático: a ação. Por isso, ao lermos este livro precisamos levar em conta a ação de narrar o vivido poeticamente.
Temos neste livro uma série de textos escritos sobre viagens. A memória de cidades que o autor visitou ao longo de sua vida pelo mundo afora. Dentro e fora do Brasil. A ação de viajar o objeto do livro, seu assunto.
Memópolis, vejamos: um neologismo, uma palavra nova construída a partir de um processo de aglutinação. Nesse processo, a palavra “memória” foi cortada, perdeu seu “ria”, para dar lugar à palavra “pólis”, cidade em grego.
Assim, o título nos anuncia uma memória-cidade, uma memória da cidade, uma cidade da memória, uma cidade memorada.
As conjugações possíveis nos levam sempre à relação entre memória e cidade, e é isso que nos instiga. Mas não nos contentemos com esta relação em si, bastante explorada pela literatura em todos os tempos, bem como pelas outras artes.
A relação entre memória e cidade que aqui encontramos é instigante porque não é evidente, tampouco óbvia. Nem uma coisa nem outra, nem a memória nem a cidade, pode ser percebida nos textos aqui reunidos como dimensão resolvida. O que é algo resolvido no nível simbólico, da representação?
Aquilo desprovido de dúvida, que não nos parece carente de sentido, incompleto. Não é assim que as cidades e as memórias sobre elas se apresentam aqui.
Prestemos atenção à escrita de Memópolis: são mi- crotextos, fragmentos, anotações, formas que indicam a complexidade do conteúdo. Sim, quando o conteú- do, aquilo que queremos dizer, é complexo, a forma como dizemos sempre se revela insuficiente, incompleta.
Podemos pensar aqui que a forma mimetiza, repre- senta, a complexidade dos objetos cidade e memória. O que é uma cidade? O que é a memória? Quando o viajante se dispõe a rememorar as cidades onde viveu ou por onde passou, o limite entre fato e ficção, entre verdade e invenção, revela-se bastante tênue.
Todavia, isso não chega a constituir um problema para o escritor, que não tem ambição de historiador, mas sim de poeta, de sujeito da fantasia, devoto da criação. O que lhe interessa não é a história social propriamente, a di- nâmica dos fatos, mas tudo aquilo que atravessa a história, que escapa às determinações desta.
A memória é, de certo modo, a ponte para esse atravessamento, uma referência de imaginação livre, que nenhum regimento jurídico, nenhum código de ética, consegue aprisionar. A memória aqui vai e vem, transita por localidades e temporalidades, num movimento polissêmico que funda uma poeticidade.
Livro de viagens por cidades brasileiras, européias, estadunidenses, asiáticas, hispano-americanas e africa- nas, visíveis, por motivos diversos: estudo, trabalho.
Mas livro também de viagens por cidades invisíveis, na linha do escritor Italiano Ítalo Calvino, que a leitora ou leitor que não leram, porventura, devem procurar ler para interagir com mais acuidade com Memópolis.
Todavia, o que encontramos aqui é muito mais que um livro de viagens em torno de si mesmo, auto-retratos sensíveis do autor não apenas quando jovem, mas também quando criança e adolescente.
As ilustrações de sua própria autoria acentuam de modo muito significativo o horizonte semântico, a carga de sentido, de cada microtexto, instigando-nos a perceber a zona de indeterminação na qual a memória está envolvida.
O que aconteceu realmente em determinados lugares conhecidos – Rio Grande do Sul, Chile, Paris, Istambul, Maputo -, mas também em lugares estranhos – Natália, Luzern, Arica, Herência, Convent? O prazer muito especial da leitura deste livro está associado a um certo desinteresse pela história que se conta em prol da encenação da memória.
A memória é a personagem, quem fala, percebe, encontra, esconde – e, por isso mesmo, encanta. Antes de quererem entender, o leitor e a leitora precisam viajar neste livro. Boa viagem!
Anelito De Oliveira
MEMÓPOLIS faz parte da Coleção ‘Infame Ruído’ da Inmensa Editorial e pode ser adquirido através do e-mail inmensaeditorial@gmail.com ou jdinizarq@gmail.com