TRANSARQUITETURA
uma (in)disciplina
TRANSARQUITETURA, uma (in)disciplina / por Joao Diniz
O tema da transArquitetura tem sido recorrente e, em publicações a partir de 1999 quando passo a ser professor no curso de arquitetura da Universidade Fumec. A prática desta, que costumo chamar de uma ‘(in)disciplina’, começa a ocorrer nos primeiros anos do curso desta universidade e, a partir daí, em oficinas e atividades isoladas eventuais em outras escolas de arquitetura.
Em 2010 a convite das editoras do número 6 da revista periódica ‘Bloco’ da Universidade FEEVALE de Novo Hamburgo no Rio Grande do Sul, e dedicada à prática interdisciplinar da arquitetura e urbanismo, apresentei o texto ‘Transversalidades Convergentes: reflexões sobre um fazer arquitetônico expandido’, onde, entre outros assuntos, e conforme apresentado a seguir, abordei pela primeira ves os conceitos e alcances da transArquitetura.
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A experiência pessoal sempre acontece num território de constatações práticas e teóricas e nos leva a um espaço de contradições várias, de erros e acertos, de avaliações e tentativas num universo existente e possível, real e incompleto, povoado de sonhos e frustrações. Então, como professor em uma escola em formação, e a partir de minha prática profissional como realizador de projetos, inicio na Universidade Fumec em Belo Horizonte lecionando em disciplinas de projetação edilícia fazendo da experiência, de minha experiência um ponto de partida para ensinar e aprender.
Posteriormente identifiquei as carências deste alvo acadêmico preferencialmente focado no objeto arquitetônico e na beleza e eficiência do edifício, e me ocorreu a criação de uma disciplina experimental onde coubessem todos os tipos de interesses satélites ao entender do mundo e da vida através da arquitetura, construindo conexões com os outros saberes e práticas, conexões inéditas e até forçadas, que tentariam encontrar na transversalidade e na subjetividade, novos estímulos que quebrassem o panorama escolar vigente composto muitas vezes por alunos sonolentos e professores arrogantes.
Propus então a transArquitetura, disciplina curricular eletiva, como uma maneira própria e nova de abordar a nossa profissão mutante e híbrida que, apesar de muitíssimo antiga, merece sempre ser explicada, pois parece que ao longo dos tempos, as comunidades não sabem ainda objetivamente o que é o profissional de Arquitetura, o que pode fazer e até onde pode chegar à sua real função social. Constatei que o termo transArquitetura já existia internacionalmente, mas em práticas de arquiteturas virtuais e realidades informatizadas.
Essa nova disciplina acontece numa abordagem orgânica, focada no indivíduo e em sua relação com si mesmo e com os seus grupos afins, onde os possíveis cinco ou mais sentidos humanos são a partida para o diálogo com outras profissões e saberes numa perspectiva inicialmente cultural e artística, e expandida aos universos da saúde, da espiritualidade, da consciência política e ambiental, da inclusão social, da experimentação de linguagens diversas, e da lógica e objetividade do fazer arquitetônico quiçá embasado por um arcabouço de raciocínios objetivas ou não.
O “espírito Trans” aparece então como coexistência de conhecimentos, aparentemente diversos, desconectados até então, mas imantados na reflexão conjunta e na experimentação. Objetivamente, a matéria funciona eventualmente na oferta curricular da universidade, ou em oficinas temporárias e itinerantes. Mas, antes disso, é importante como maneira de pensar a profissão numa perspectiva própria inventando o transArquiteto, um talvez não-especialista, ou sábio doutor desta (in)disciplina.
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Essa disciplina foi ofertada por alguns semestres no começo dos anos 2000 na Universidade Fumec e, posteriormente, talvez devido ao rumo pragmático tomado pelo curso, deixou de ser procurada pelos estudantes. Contudo, a partir de divulgações desses conceitos na internet, partes destas investigações passam a acontecer em atividades de curta duração, em eventos, na maioria das vezes, a convite de estudantes, nas semanas de arquitetura anuais que intentam abordar vivencias extra curriculares.
No segundo semestre de 2020 o coordenador do curso de arquitetura da Universidade Fumec, o arquiteto Jacques Lazzarotto, no sentido de proporcionar atividades que trouxessem um diferencial às disciplinas ofertadas remotamente durante a pandemia, me propõe que fossem retomadas as aulas da transArquitetura. Assim a matéria passa a novamente a receber matrículas se propondo novamente a investigar as possibilidades interdisciplinares da profissão em dialogo com outras áreas da cultura e do saber.
Seguindo o modelo da primeira edição da disciplina as aulas semanais, abordam, através das reflexões realizadas pelo professor, estudantes e convidados externos, as interfaces entre a arquitetura e assuntos complementares e pertinentes a ela, tais como: criatividade, artes visuais, literatura, comunicação, natureza, saúde, filosofia, música, ciências sociais, e cidade pós pandemia, dentre outros.
Estes convidados são pessoas destacadas em suas áreas de atuação e provêm de diversas localidades do Brasil e exterior. No segundo semestre de 2020 por lá estiveram, o artista visual e escritor Marcelo Xavier, a historiadora e crítica de arte Marília Andrés, a jornalista Daniella Zupo e a pediatra Simonete Torres (Belo Horizonte), o poeta Luis Turiba (Rio de Janeiro), o fotógrafo Eduardo Trópia (Ouro Preto), o músico Estevão Teixeira (Juiz de Fora), o arquiteto ambientalista Mauricio Andrés (Brasília), e a filósofa Angélica Sátiro (Barcelona), dentre outro/as que se dispuseram a comparecer às aulas virtuais participando de um dialogo envolvendo as interfaces de suas atividades profissionais e o fazer arquitetônico. A ideia é que em cada semestre hajam convidados diferentes, permitindo a participação de alunos de semestres anteriores; e que cada aula remota seja gravada e disponibilizada online numa espécie de fórum permanente sobre o assunto.
Durante e a partir das aulas ministradas estudantes são estimulados a realizar breves trabalhos práticos, sobre cada um dos assuntos apresentados, a partir de uma abordagem tripla que envolve três focos: a curiosidade – ou a descoberta de um problema a ser resolvido, a analogia – como detecção de áreas de estudo para a resolução desse problema, e a experimentação – ou uma experiência autoral no tratamento da questão. Este triplo enfoque para a aproximação e ação sobre determinado tema é sugerido no livro de Walter Issacson como procedimentos recorrentes nas ações criativas de Leonardo da Vinci . Estes trabalhos dos estudantes vão compondo progressivamente um livro individual, onde cada capítulo se refere a cada uma das aulas, e que é entregue no final do semestre. As notas são dadas num sistema de auto-avaliação feita pelos próprios estudantes, considerando a execução desse livro proposto e a participação ativa nas aulas.
Em 2012 o IAA, Instituto Arte das Américas sediado em Belo Horizonte, junto com a UFMG e a UEMG, promoveu o ‘V Fórum Artes das Américas’ no Museu da Pampulha em Belo Horizonte, discutindo a transversatilidade na contemporaneidade em referencia às relações entre arte e ciência, arte e arquitetura, entre o dialogo entre as artes e as mídias e entre a critica e curadoria; e, dentre outros palestrantes apresentei uma reflexão sobre essa disciplina através da leitura do documento que chamei de ‘transArquitetura: um possível manifesto’, que reproduzo a seguir:
TRANSARQUITETURA
um possível manifesto
A contemporaneidade está plena de recursos comunicativos
mas existe duvida se estas redes invisíveis realmente geram
novos conhecimentos, encontros, produções e conteúdos,
e se conseguem vencer a atual cultura da dispersão
e a obsolescência programada nas ideias descartáveis
que aparecem como imediatos e mediáticos bens consumo
Por outro lado, o pensamento humano segue descontínuo
no labirinto dos sentidos, no divagar das horas e das esperas,
no foco multidirecional das dúvidas, vontades e ações,
e varia entre as dificuldades do ser, as possibilidades do fazer,
a brevidade das atenções, a diversidade de interesses,
e a expansão do corpo e da alma no universo intemporal
A natureza é múltipla e interativa e coloca sempre em risco,
numa restrição de vida, os seres extremamente especializados,
propondo sequencias, inter-relações e diálogos complementares,
o homem pretenso senhor desta ordem refuta o inesperado caos
mas é sempre surpreendido, em seu domínio mecânico e frágil,
pelas catástrofes do pulsar geográfico ou da crença exacerbada
Mas existem os agentes do avanço na observação do inesperado,
na tradução dos opostos, no risco do pensamento e do gesto,
no ímpeto selvagem que propõe a variedade de disciplinas e rumos,
nas hipóteses das escutas e das vozes, nas caravanas e nos retiros,
no intercambio humano e espiritual de um tempo expandido
que nunca é só presente, mas que só se realiza na ação imediata
Os temas de Leonardo se integram em minúsculos códices,
da escrita inversa ao medíocre, na polifonia de sensos e diagramas,
na integração da anatomia e da máquina, do som e da luz,
do texto e do traço, do movimento e do peso, da hélice, da roda
do prato, do guardanapo, do canhão, da ideia e do engenho,
da cidade, da ponte e do canal, da guerra, do descanso e do humor
A cultura digital propõe o novo renascimento nas ferramentas plurais
na bagagem sem peso de uma integração necessária e oculta,
no congestionamento físico dos modelos vencidos ou em agonia,
nas nuvens invisíveis dos tempos históricos e virtuais
estão as saídas sensíveis que refutam a ignorância herdada,
da apatia da dominação intolerante e dos ataques velados em raiva
A leveza ativa do pássaro se opõe à frágil pena que cai,
no vento ocasional das tendências ditadas e obedecidas,
a asa ativa busca seu foco, e flutua nas correntes da polêmica,
tentando subir além das tempestades e dos ataques,
vislumbrando a autonomia e limite do vôo, nos seus mapas mentais,
local e momento do pouso e acolhida do desconhecido, ou não
A arquitetura do homem une arqui/arte à tectura/tessitura
Ideia e fazer, projeto e matéria, pedra e arco, parede e espaço,
na indisciplina do sonho há o rigor variável das metas,
no vácuo indefinido do nada pode estar a síntese do lugar,
a mão cuidadosa tenta seu papel ao buscar o traço que une
o tempo inexistente ao significado da imagem e da palavra
Pelas proposições cordiais da provocação e dos idiomas
estão os transversos passos das esquinas, das praças, das festas,
os sensos vários do corpo e da alma conduzem as matérias
da viagem e da chegada no roteiro integrado das culturas,
dos valores ambientais, das viabilidades econômicas imaginadas,
e dos respeitos sociais que devem sustentar os dias que passam
A idade durável do cosmos pode transpassar os atores breves
nas décadas transcorridas, na existência transposta em artes,
transparentes ou intransigentes, transmitidas ou intrometidas
transportadas ou atravessadas, em transes ou em trancas
em trapos ou em tranças, mas sempre através da trama
do espírito trans, aberto, curioso, aprendiz, atento e sereno
A transArquitetura é o local onipresente da experimentação,
o plano de cada ser em função das próprias e gerais demandas,
uma maneira individual e coletiva de ter tempo e ser tido por ele,
de construir na existência todas possibilidades frente às barreiras,
de fazer uma história engenhada nas poéticas do espanto,
alimento para os sujeitos sempre iniciantes em sua experiência
Na transArquitetura o desconhecer não é barreira, mas caminho,
o saber não é estilo, mas maneira de sempre renovar o olhar,
a profissão não é limite, mas a forma de reinventar vocações,
o instante é uma paixão provocante que deve ser sempre conquistada,
no espaço que nasce na mente presente, observante e agente,
todos são diversos, unidos, sensíveis, possíveis, na transArquitetura.